«I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.»
Publicação: Diário da República n.º 184/2022, Série I de 2022-09-22, páginas 5 - 15
Emissor: Supremo Tribunal de Justiça
Data de Publicação: 2022-09-22
ELI: https://data.dre.pt/eli/acstj/6/2022/09/22/p/dre/pt/html
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TEXTO
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2022
Sumário: «I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.»
1736/19.8T8AGD-B.P1.S1
Julgamento Ampliado de Revista no Supremo Tribunal de Justiça
A Acção, o Pedido e o Objecto do Processo
Na execução comum a Caixa Geral de Depósitos, S. A., move contra AA e marido BB deduziu este último embargos de executado no presente apenso B (no apenso A, tinha deduzido embargos a Executada mulher).
Na petição executiva, tinha a Exequente alegado que os Executados não pagaram as prestações a que estavam obrigados por força de dois contratos, um deles de compra e venda e mútuo, com hipoteca e fiança, o outro, contrato de empréstimo com fiança, desde 16/01/2013 e 16/12/2012, respectivamente, pelo que as duas dívidas se venceram na sua totalidade.
Notificou os Executados para procederem à liquidação dos valores em dívida e mais os notificou da perda do benefício do prazo, caso não procedessem à regularização dos montantes em causa, com o vencimento antecipado da totalidade da dívida.
Invocou porém o Embargante que inexistiu qualquer declaração resolutória, pelo que não se verificou a extinção da relação contratual ou o vencimento antecipado de capital e juros.
Por outro lado, o incumprimento contratual só foi levado ao conhecimento do ora Embargante/Executado/fiador com a citação para a execução.
As cláusulas dos contratos estipulavam o prazo de 30 anos para amortização do empréstimo.
A Exequente procedeu à liquidação de juros remuneratórios e de mora vencidos desde 16/01/2013 e 16/12/2012, até à apresentação do requerimento executivo, pelo que, visto o disposto no artigo 310.º do Código Civil, encontram-se prescritos todos os juros remuneratórios e moratórios vencidos antes de 20/07/2014, acrescendo as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros.
Em Contestação dos embargos, a Exequente invocou a responsabilidade do Embargante, na qualidade de fiador, no pagamento da quantia de que seja credora, emergente dos contratos exequendos.
O prazo de prescrição a aplicar à situação dos autos é o ordinário de 20 anos, previsto no artigo 311.º do Código Civil.
Ao ora Embargante foi comunicada a perda do benefício do prazo e a integração no PARI (Plano de Acção para o Risco de Incumprimento, decorrente do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10).
As Decisões Judiciais
Em saneador-sentença, foi decidido, por aplicação do prazo de prescrição de 5 anos do artigo 310.º als. d) e e) do Código Civil, considerar prescrita a totalidade da dívida de capital e juros peticionada no processo.
Tendo a Embargada recorrido de apelação, a Relação julgou a apelação parcialmente procedente, declarando apenas prescrito o crédito da Exequente respeitante às prestações vencidas até 20/7/2014, prosseguindo a execução quanto ao restante.
As Revistas
O Embargante interpõe recurso de revista, concluindo como segue:
1/2 - [...]
3 - Entende o ora Recorrente que a douta Sentença analisou devidamente os documentos e os factos em causa e aplicou correctamente o direito aos mesmos.
4 - Considera, e bem - na nossa opinião - o Tribunal "a quo" que a Recorrida "não alegou a resolução contratual em sede de requerimento executivo, mas o vencimento antecipado das prestações ou da totalidade da dívida nos termos previstos no artigo 781.º do Código Civil."
5 - Invoca o Tribunal "a quo" os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.03.2014, relatado por Silva Gonçalves, e de 29-09-2016, relatado por Lopes do Rego.
6 - Na mesma senda, cita o ora Recorrente os seguintes Acórdãos:
- do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2019;
- do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-12-2017 e de 08-05-2019;
- do Tribunal da Relação de Évora de 21-01-2016;
- do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-05-2019;
7 - A douta Sentença considera como provado que:
"F) A cláusula 9.ª do documento complementar do contrato identificado em A) prevê o seguinte: 1 - O empréstimo será amortizado em prestações mensais constantes com bonificação decrescente, de capital e de juros, vencendo-se a primeira no correspondente dia do mês seguinte ao da celebração deste contrato e as restantes em igual dia dos meses seguintes. [...]"
8 - Mais deu como provado o Tribunal "a quo" que: "K) A cláusula 7.ª do contrato prevê que: 1 - O pagamento do capital emprestado e dos respetivos juros será feito em trezentas e sessenta prestações mensais, constantes, cujo montante será oportunamente comunicado pela credora, vencendo-se a primeira no correspondente dia do mês seguinte ao da celebração deste contrato. [...]"
9 - Considera assim a douta Sentença que "conforme resulta dos factos provados F) e K), a amortização do capital mutuado seria pago em prestações mensais compostas por capital e juros."
10 - Como bem refere o Tribunal "a quo": "... a exequente pede o pagamento da quantia exequenda baseando juridicamente tal pretensão no vencimento antecipado das prestações, ao abrigo do disposto no artigo 781.º do Código Civil...".
11 - Conclui a douta Sentença que: "...no caso dos autos aplica-se o prazo de prescrição de cinco anos, previsto no artigo 310.º, alínea e) do Código Civil, pelo que datando a falta de pagamento das prestações em dívida de 16.01.2013 e 16.12.2012, a dívida de capital prescreveu em 16.01.2018 e em 16.12.2017 respetivamente."
12 - E julgou assim procedentes os embargos de executado deduzidos pelo Embargante ora Recorrente, declarando extinta a execução.
13 - Foi proferido douto Acórdão, que julgou a apelação apresentada pela Recorrente Caixa Geral de Depósitos, S. A., parcialmente procedente, "declarando-se apenas prescrito o crédito da exequente respeitante às prestações vencidas até 20-07-2014, prosseguindo a execução quanto ao restante valor em dívida."
14 - Aí se refere: "Essas prestações integram a previsão da alínea e) do art. 310.º do C. Civil, prescrevendo em cinco anos (neste sentido se pronunciaram, entre outros, os acórdãos do STJ, de 27-03-2014 e de 29-09-2016 (processos n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1 e 201/13.1TBMIR-A.C1.S1, respectivamente)."
15 - O ora Recorrente não pode concordar com o douto Acórdão, concretamente, quanto à interpretação e aplicação do normativo supra indicado, na medida em esse considera que: "Tendo em conta o prazo de cinco anos contados até 20-07-2019, apenas se podem considerar prescritas as prestações devidas até 20-07-2014."
16 - Mais refere o douto Acórdão: "... apenas se pode considerar que a prescrição opera relativamente ao período que decorre desde que os mutuários deixaram de pagar as prestações de reembolso - 16-01-2013 para um dos mútuos e 16-12- para outro - até 20-07-2014. Não se estendendo a prescrição aos créditos vencidos posteriormente a 20-07-2014, a execução terá que prosseguir quanto a estes créditos."
17 - Ora, salvo o devido respeito, não podemos aceitar a interpretação e aplicação da norma acima referenciada nos termos constantes do douto Acórdão recorrido.
18 - Concordamos integralmente com a posição do recente Acórdão da 5.ª Secção do T.R.P. de 23 de Novembro de 2020 quanto à mesma matéria, e no âmbito do Apenso A mesmo processo: "Na verdade, e nos termos do disposto no art. 781.º do C.Civil - do qual a recorrente fez uso - "se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas". Ou seja, o devedor, rigorosamente, fica obrigado ao pagamento, não do capital em dívida, mas de todas as prestações acordadas, que se vencem imediatamente - alterando-se, assim, o plano de pagamento acordado. Pelo que o incumprimento, por parte da embargante, não altera o referido prazo de prescrição, consoante se entendeu no ac. do STJ de 18-10-2018, in www.dgsi.pt:
"I - O legislador equiparou a amortização do capital, designadamente do mútuo, realizada de forma parcelar ou fraccionada por numerosos anos, como o mútuo bancário destinado à habitação própria, ao regime dos juros, ficando sujeito ao mesmo prazo de prescrição, nomeadamente cinco anos - art. 310.º, alínea e), do Código Civil.
II - A circunstância de tal direito de crédito se vencer na sua totalidade, em resultado do incumprimento, não altera o seu enquadramento em termos de prescrição ...".
No mesmo sentido cf. os ac.s do STJ de 23-1-2020, in CJ, XXVIII, I, 33, e da Relação de Lisboa de 15-2-2018 e 27-10-2016, in www.dgsi.pt.
Entendimento que já seguimos no acórdão relatado no proc. n.º 946/17.7T8PVZ.P1."
19 - Em suma, na nossa perspectiva dúvidas não restam de que no caso dos autos se aplica o prazo de prescrição de cinco anos, previsto no artigo 310.º, alínea e) do Código Civil.
20 - Pelo que, tal normativo deverá ser interpretado e aplicado da seguinte forma: datando a falta de pagamento das prestações em dívida de 16.01.2013 e 16.12.2012, a dívida de capital prescreveu em 16.01.2018 e em 16.12.2017, respectivamente.
21 - Bem decidiu o Tribunal de 1.ª instância, na senda dos Acórdãos do S.T.J. de 06-06-2019, 29-06-2016 e 27-03-2014, todos in www.dgsi.pt
22 - Pelos motivos e fundamentos supra expostos, deverão V.ª Exas. dar provimento ao recurso apresentado, julgando o mesmo totalmente procedente por provado, e ordenando a manutenção da douta decisão proferida pelo Tribunal "a quo".
Também a Exequente/Embargada recorre de revista, concluindo:
a/b) [...]
c) Pese embora o vencimento da dívida o Tribunal a quo, decidiu que seria aplicável a norma de prescrição dos 5 anos.
d) Nos presentes autos veio o Recorrido invocar a prescrição do direito da Exequente, ora Recorrente, nos termos do artigo 310.º, alínea e) do Código Civil.
e) Considerando o incumprimento contratual e o vencimento da dívida não poderá considerar-se a previsão legal invocada, uma vez que esta respeita a prestações periódicas, o que, in casu, deixou de existir.
f) Os mútuos bancários, independentemente das várias formas que possam revestir - no caso em apreço um crédito à habitação -, nunca prescrevem antes de decorridos, pelo menos, 20 anos, é a chamada "prescrição ordinária" (artigo 309.º do Código Civil).
g) Na situação em apreço, estando a dívida incorporada em títulos executivos - escrituras públicas - documentos exarados por notário que importam a constituição ou reconhecimento de uma obrigação (vide n.º 1 alínea b) do artigo 703.º do Código de Processo Civil), fica a mesma sujeita ao prazo ordinário de prescrição, nos termos do 311.º, n.º 1 do Código Civil, não se aplicando a alínea e) do artigo 310.º do mesmo código.
h) Face à resolução do contrato de mútuo por incumprimento, a Caixa Geral de Depósitos considerou vencida toda a dívida, ficando sem efeito o plano prestacional acordado, voltando os valores em dívida a assumir em pleno a sua natureza de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de vinte anos.
i) Por consequência, a obrigação exequenda não é subsumível à alínea e) do artigo 310.º do Código Civil mas, outrossim, aos artigos 309.º e 311.º, do Código Civil. Mais,
j) Todos os mútuos bancários têm, como regra, o reembolso em prestações mensais e sucessivas de capital, juros e demais encargos, pelo que, a ser acolhida a tese defendida na douta sentença recorrida, a regra para os empréstimos bancários passaria a ser a da prescrição do capital, no prazo de 5 anos.
k) Isto representaria uma clara desprotecção do credor que nem sequer vê o valor de capital mutuado e já vencido passível de ressarcimento constituindo, tal facto, uma desproporcional aplicação do direito do devedor e credor o que ataca o princípio de segurança jurídica e bancária.
l) Esta interpretação aplicada de forma generalizada, acaba por violar o princípio de segurança jurídica pois desprotege instituições bancárias, que concedem crédito, e se vêem, depois, em caso de incumprimento, impedidos de reaver, até o capital que emprestaram.
m) Tal interpretação não assegura igualmente a segurança nos mútuos bancários e no próprio ordenamento jurídico, Pelo que,
n) É entendimento da Recorrente que ao contrato de empréstimo já resolvido é aplicável o prazo ordinário de prescrição é de vinte anos (artigo 309.º, do Código Civil), pelo que o direito de crédito da Recorrente não se mostra prescrito em parte alguma.
O Embargante apresentou contra-alegações, nas quais continua a sustentar o alegado na respectiva revista.
A Tramitação no Supremo Tribunal de Justiça
Em 10/05/2021, foi suscitada pelo Relator a intervenção do Exmº Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para pronúncia sobre a oportunidade ou a conveniência do julgamento ampliado de revista, nos presentes autos.
Entre o mais, entendeu-se que, em 28/4/2021, tinha sido proferido acórdão na 6.ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de Justiça, no processo especial de embargos de executado, com o n.º 1736/19.8T8AGD-A.P1.S1, que correu termos por apenso à execução de que os presentes embargos são também dependência.
Os factos apurados eram exactamente os mesmos nas duas oposições por embargos, sendo que a Relação, no presente apenso B, tinha antes fixado a prova de mais três factos que, todavia, se extraem documentalmente dos contratos de mútuo celebrados que constituem título executivo contra ambos os Executados/Embargantes.
No referido apenso A foi negada a revista, quanto à decisão da Relação, tomada por maioria, que julgou improcedente a apelação da Exequente, pela confirmada verificação da excepção de prescrição, aplicável a todos os montantes reclamados pela mesma dita Exequente.
Nesse sobre mencionado apenso A, fundamentou-se a negação da revista no facto de o entendimento do acórdão recorrido, de considerar aplicável no caso o prazo prescricional de cinco anos nos termos do artigo 310.º, alínea e), do Código Civil, se mostrar consentâneo com o posicionamento que este tribunal tem vindo reiteradamente a defender em situações similares às dos presentes autos, dado estarem em causa contratos de mútuo onerosos em que a obrigação de restituição do capital mutuado foi fraccionada (prestações) o que consubstancia um acordo de amortização em que cada uma das prestações mensais devidas é uma quota de amortização do capital (ainda que integrada por duas fracções: uma de capital e outra de juros), não relevando para o enquadramento em termos de prescrição a circunstância do direito de crédito se vencer na sua totalidade, em resultado do incumprimento.
Mais se entendeu que, nesse sentido, o que releva para efeitos de enquadramento do regime prescricional não é a forma por que a obrigação exequenda se mostra titulada, mas a estrutura do direito de crédito da Embargada decorrente do facto de estar em causa uma obrigação de reembolso de dívida que foi objecto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e outra de juros e que traduzem a existência de várias prestações periódicas, com prazos de vencimento autónomos.
Esta prescrição destina-se a evitar a ruína do devedor, pela acumulação da dívida, derivada designadamente de quotas de amortização de capital pagável com juros. Numa situação destas, a exigência do pagamento de uma só vez, decorridos demasiados anos, poderia provocar a insolvência do devedor a viver dos rendimentos, nomeadamente do trabalho, e que o legislador, conhecedor das opções possíveis, quis prudentemente prevenir, colocando no credor maior diligência temporal na recuperação do seu crédito (Vaz Serra, BMJ n.º 107, pág. 285).
A razão que justifica a prescrição dos juros decorrido o prazo de cinco anos, tem igual cabimento, no caso do referido pagamento fracionado, não obstante a restituição do capital mutuado possa corresponder a uma obrigação unitária.
Dada tal equiparação de regime, compreende-se que, ao caso, não possa ser aplicável o prazo ordinário da prescrição de vinte anos, previsto no art. 309.º do CC.
A natureza da obrigação não se altera perante o vencimento imediato com a perda do benefício do prazo, ou seja, o regime de prescrição estabelecido na alínea e) do artigo 310.º do Código Civil, mantém aplicação atenta a circunstância do direito de crédito se encontrar vencido na totalidade em consequência do incumprimento contratual.
Em contraponto da opção doutrinal em causa exposta no acórdão proferido no apenso A, ponderou-se que o caminho a seguir podia não implicar a opção de o prazo reduzido de prescrição de 5 anos ser de aplicar às quantias resultantes, quer da pura e simples soma de todas as prestações de capital e juros, quer da quantia também total, por perda do benefício do prazo e aplicação da norma do artigo 781.º do Código Civil.
Por um lado, parte da jurisprudência tem considerado, em tais casos, a aplicação do prazo ordinário de prescrição, do artigo 309.º do Código Civil.
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