«Na fase de inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurem ser de grande interesse para descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art. 17.º, da Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime)»
Publicação: Diário da República n.º 218/2023, Série I de 2023-11-10, páginas 83 - 100
Emissor: Supremo Tribunal de Justiça
Data de Publicação: 2023-11-10
TEXTO
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2023
Proc. n.º 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1
Acordam, no Pleno, das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1 - O arguido AA veio, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 437.º n.os 2, 3, 4 e 5 e 438.º n.os 1 e 2, do C.P.P., interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27/01/2021, transitado em julgado em 03/02/2022, que julgou improcedente o seu recurso do despacho proferido, em 23/09/2020, pelo Senhor Juiz de Instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal, com os seguintes fundamentos, que passamos a sintetizar:
O referido acórdão recorrido está em manifesta oposição sobre a mesma questão jurídica com o acórdão, do mesmo Tribunal da Relação, de 07/03/2018, também transitado em julgado e publicado na base de dados www.dgsi.pt (acórdão fundamento).
A questão jurídica em causa consistia em saber se a circunstância de uma mensagem de correio eletrónico se mostrar sinalizada como aberta ou lida, aquando da respetiva apreensão, afastava a aplicação do regime previsto no art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, ou se, diferentemente, essa circunstância é irrelevante, aplicando-se o regime da citada norma a todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas, independentemente do facto de as mesmas estarem sinalizadas como abertas ou lidas ou, ao invés, como fechadas ou não lidas.
Ora, enquanto o acórdão recorrido entendeu que o regime aplicável ao caso dos autos era o constante do art. 16.º, da Lei do Cibercrime, cabendo ao Ministério público seriar o material apreendido e determinar ele - e não o JIC - qual o material probatório que considera relevante, dado que os mails, porque previamente abertos, mais não são que meros documentos digitais, o acórdão fundamento, por seu vez, decidiu que as mensagens de correio eletrónico que se encontrem armazenadas, num sistema informático, independentemente de se encontrem abertas ou fechadas, só podem ser apreendidas mediante despacho prévio do Juiz de Instrução Criminal, devendo, assim, o juiz a ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência.
Os acórdãos em questão foram proferidos, no âmbito do mesmo processo de inquérito, e no domínio da mesma legislação - a Lei n.º 109/2009, de 15/09, -, não tendo havido entre a prolação dos mesmos qualquer alteração legislativa.
Adiantou, desde logo, que fosse fixada jurisprudência neste sentido:
«Na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução criminal a decisão sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico, mesmo que se encontrem sinalizadas como abertas ou lidas no momento da restiva apreensão, devendo o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento, a fim de decidir pela junção aos autos daquelas que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova».
2 - O Exmo. magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu ao recurso interposto, defendendo a rejeição do mesmo, por não se estar perante dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, não se verificando, deste modo, em sua opinião, oposição de julgados.
3 - Por sua vez, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, emitiu, nos autos, desenvolvido parecer, nos termos dos qual, divergindo da posição assumida pelo seu Colega do Tribunal da Relação de Lisboa, entendeu, em síntese, que se verificam, in casu, os pressupostos formais e substanciais do recurso extraordinário em causa, nomeadamente, a oposição de julgados, pelo que deviam os autos prosseguir (art. 441.º n.º 1, in fine, do C.P.P.).
Observado o contraditório, o recorrente veio responder, dizendo que nada tinha a acrescentar, uma vez que a posição do Senhor Procurador-Geral Adjunto era coincidente com a sua.
4 - Teve lugar a Conferência e, em 06/07/2022, foi proferido acórdão pela 3.ª Secção Criminal, que julgou observados todos os requisitos formais e substanciais, incluindo a oposição de julgados entre os dois referenciados acórdãos (recorrido e fundamento) e, em consequência, determinou o prosseguimento do recurso, nos termos do art. 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.
5 - Cumprido o disposto no art. 442.º n.º 1, também do C.P.P., vieram o recorrente e o Ministério Público apresentar alegações, tendo o primeiro concluído da seguinte forma (Transcrição):
1 - O presente recurso foi interposto, a 02.03.2022, contra o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.01.2021 (Acórdão Recorrido), através do qual o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso apresentado pelo Recorrente contra o Despacho do Mm.º Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, de 23.09.2020.
2 - No Acórdão Recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que "os mails apreendidos eram correspondência aberta, e-mails lidos" e, por essa precisa razão, sustentou que "o regime aplicável ao caso dos autos é o constante do artigo 16.º da Lei do Cibercrime, cabendo ao MP seriar o material apreendido e determinar ele - e não o JIC - qual o material probatório que tem por relevante dado que os mails, porque previamente abertos, mais não são do que meros documentos digitais".
3 - Verifica-se uma marcada oposição de julgados - e, até mesmo, uma violação do caso julgado formal - entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento, sobre a mesma questão fundamental de direito, que é a seguinte: saber se a circunstância de uma mensagem de correio eletrónico se mostrar sinalizada como aberta ou lida, aquando da respetiva apreensão, afasta a aplicação do regime previsto no artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, ou se, diferentemente, essa circunstância é irrelevante, aplicando-se o regime previsto no artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, a todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas, independentemente do facto de as mesmas estarem sinalizadas como abertas ou lidas ou, ao invés, como fechadas ou não lidas.
4 - Os factos subjacentes às decisões finais tomadas em ambos os Acórdãos são, também eles, idênticos, uma vez que ambos os Acórdãos têm por referência o mesmo processo e o mesmo inquérito e ambos os Acórdãos têm por referência a apreensão física de mensagens de correio eletrónico ordenadas pela mesma decisão do Ministério Público.
5 - Ambos os Acórdãos (Recorrido e Fundamento) foram proferidos no domínio da mesma legislação - a Lei do Cibercrime - uma vez que, no intervalo da sua prolação, não ocorreu qualquer modificação legislativa que haja interferido, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.
A DIMENSÃO LEGAL/INFRACONSTITUCIONAL DO OBJETO DO RECURSO
6 - Na redação original do Código de Processo Penal, de 1987, o artigo 190.º consagrava uma extensão do regime das interceções telefónicas, regulado pelos artigos 187.º a 189.º, prevendo que o disposto em tais normas era "correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone".
7 - Através da Lei n.º 59/98, de 25 agosto, o artigo 190.º do CPP passou a prever a extensão do regime das interceções telefónicas "designadamente [ao] correio electrónico".
8 - Em 23.11.2001 foi assinada, em Budapeste, a Convenção do Cibercrime, e é a partir dos artigos 19.º e 21.º da mesma que se vêm entendendo previstas as orientações do Conselho da Europa em matéria de apreensão de correio eletrónico, sendo que os Estados Partes decidiram não tomar posição expressa sobre a relevância ou irrelevância da circunstância de, no momento da apreensão, a mensagem de correio eletrónico se encontrar sinalizada como aberta ou fechada.
9 - Através da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, o legislador procedeu à alteração do CPP, em termos tais que se deixou claro que o regime das interceções telefónicas se estendia a outras formas de comunicação como o correio eletrónico, entendido enquanto meio de comunicação operável em tempo real, mas também enquanto instrumento passível de ser guardado em suporte digital.
10 - Em 2009, com a aprovação da Lei do Cibercrime e do respetivo artigo 17.º, surge no direito nacional, pela primeira vez, um regime especial respeitante à apreensão de correio eletrónico, cujo texto normativo se mantém intocável desde então e até à data, não obstante a efémera tentativa de alteração ocorrida em 2021, vetada pelo Presidente da República após o processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, que deu lugar ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021.
11 - O artigo 17.º da Lei do Cibercrime dispõe que "[q]uando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal".
12 - À luz das disposições legais relevantes - v. g., os artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º do CPP - a apreensão de correio eletrónico:
i) só poderá ser realizada no âmbito de processos relativos a crimes previstos na Lei do Cibercrime, a crimes cometidos por meio de um sistema informático, ou relativamente aos quais "seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico";
ii) a apreensão pressupõe a autorização ou ordem prévia, por despacho, de um juiz;
iii) surgirá, forçosamente, na decorrência de uma pesquisa de dados informáticos ou, em diferente cenário, pressupõe-se que seja antecedida por "outro acesso legítimo a um sistema informático";
iv) a correspondência a apreender já não se encontrará em trânsito comunicacional, mas antes armazenada no sistema informático pesquisado ou legitimamente acedido;
v) o legislador não consagrou qualquer diferenciação, para efeitos de aplicação do regime da apreensão de correio eletrónico, entre correspondência lida/aberta, por um lado, e correspondência não lida/fechada, por outro;
vi) esse meio de obtenção de prova visa a apreensão de mensagens ou registos de comunicações de natureza semelhante "que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova";
vii) a violação dos pressupostos, requisitos ou formalidades legalmente previstas é cominada como nulidade;
viii) só poderá ser apreendida a correspondência eletrónica que haja sido expedida ou recebida pelo suspeito, "mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa";
ix) é proibida a apreensão de mensagens trocadas entre o arguido e o seu defensor, "salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela[s] constitu[em] objeto ou elemento de um crime";
x) o juiz que tenha autorizado ou ordenado a apreensão de correio eletrónico deve, necessariamente, ser "a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo" apreendido;
xi) o mesmo juiz está obrigado a devolver/destruir a correspondência eletrónica que tenha sido apreendida e que, após a primeira visualização do respetivo conteúdo, conclua que não tenha "grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova", ficando aquele "ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento".
13 - A jurisprudência portuguesa sustenta, em sentido maioritário, soluções normativas como as preconizadas no Acórdão Fundamento, coincidentes com o sentido da jurisprudência que se pretende fixar, a saber: na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução criminal a decisão sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico, mesmo que se encontrem sinalizadas como abertas ou lidas no momento da respetiva apreensão, devendo o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento, a fim de decidir pela junção aos autos daquelas que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
14 - As diferenças da natureza e conceção entre a correspondência tradicional e a correspondência eletrónica, conduziram o legislador à criação de um regime normativo mais garantístico, do ponto de vista da proteção de direitos fundamentais, em relação à correspondência eletrónica.
15 - O feixe de direitos fundamentais passíveis de serem atingidos no contexto da investigação criminal e, em particular, na aplicação do regime da apreensão de correio eletrónico, exige a conceção de um regime normativo para o qual a circunstância de a correspondência a apreender, no momento da respetiva apreensão, se encontrar sinalizada enquanto lida ou aberto, se assume como fator irrelevante.
16 - O mesmo leque de direitos fundamentais reclama as mesmas garantias à correspondência eletrónica sinalizada como lida ou aberta que as que reconhece à correspondência eletrónica sinalizada como não lida ou fechada, aquando da respetiva apreensão.
17 - Só muito excecionalmente é que não será encontrado correio eletrónico no âmbito de qualquer ação de investigação criminal que passe pela realização de buscas, ou pesquisas de dados informáticos, pelo que antes da respetiva realização é praticamente certo que será encontrada correspondência eletrónica, circunstância, por isso, antecipável e que não constitui qualquer espécie de transtorno ou dificuldade prática ao reclamar uma intervenção prévia de um juiz, para ordenar ou autorizar a apreensão de correio eletrónico.
18 - Uma adequada compreensão dos regimes previstos nos artigos 15.º e 17.º da Lei do Cibercrime afasta a alegação de idênticas dificuldades práticas dessa intervenção prévia de um juiz, na medida em que a pesquisa de dados informáticos tem em vista a obtenção de "dados informáticos específicos e determinados" e só deverá ser apreendida a correspondência eletrónica "de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova", devendo, sempre que possível, ser presidida pela autoridade judiciária que a autorizou ou ordenou.
19 - É inequívoco que toda a matéria respeitante à apreensão do correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente do respetivo estado (lido ou não lido), está regulada no artigo 17.º Lei do Cibercrime, restando para o artigo 16.º a matéria respeitante à apreensão de dados informáticos que não tenham natureza comunicacional - e, portanto, dados informáticos que não sejam nem correio eletrónico, nem registos de comunicações de natureza semelhante - e para o artigo 18.º a interceção de comunicações, que difere dos anteriores por respeitar a eventos comunicacionais em curso.
20 - O regime do artigo 17.º da Lei do Cibercrime é aplicável à apreensão de correio eletrónico, quer o mesmo esteja alojado num sistema informático típico, quer o mesmo esteja alojado nos servidores de um provider de webmail.
21 - Para efeitos de aplicação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, o legislador não considerou existir qualquer restrição do objeto normativo do correio eletrónico ou dos registos de comunicações de natureza semelhante àquele que seja acedido e encontrado num sistema informático de natureza pessoal, ou profissional, aplicando-se o regime em causa independentemente dessa natureza.
A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL/DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DO OBJETO DO RECURSO
22 - Dos artigos 20.º, n.os 1, 4 e 5, 32.º, n.º 4 e 202.º, n.º 2, da CRP, decorre o direito fundamental dos cidadãos à intervenção de um juiz de instrução criminal, para efeitos de autorização ou determinação da prática de atos de investigação, no decurso da fase de inquérito, que se assumam como relevantemente passíveis de atingir outros direitos fundamentais.
23 - A intervenção anterior (à afetação dos direitos fundamentais) pelo juiz de instrução criminal permite afirmar o cumprimento dos comandos constitucionais que reconhecem a tutela jurisdicional efetiva de direitos, liberdades e garantias, não sendo suficiente, para esse desiderato, que a intervenção do juiz ocorra a posteriori (do momento da possível lesão de direitos).
24 - Esta é uma competência exclusiva do juiz de instrução criminal, não concorrente com quaisquer competências investigatórias do Ministério Público ou dos órgãos de polícia criminal.
25 - Considerando o impressivo e distinto retrato do juiz e do Ministério Público que resulta do texto constitucional e das disposições legais aplicáveis é incontornável reconhecer que a intervenção judicial constitui uma garantia adicional de ponderação dos direitos e liberdades atingidos no decurso da investigação criminal (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021).
26 - O potencial ablativo da liberdade dos cidadãos é particularmente elevado em sede de processo penal, pelo que a CRP impõe a intervenção do juiz de instrução criminal, enquanto titular de órgão de soberania independente, imparcial, e especialmente vocacionado para a proteção dos direitos fundamentais, sempre que se revele necessário garantir que os direitos e liberdades dos cidadãos não sofrem compressões desadequadas, desnecessárias ou desproporcionais, e para prevenir que intervenções restritivas abusivas atinjam a sua esfera jusfundamental (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021).
27 - O direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar encontra o seu referente genético na noção de Estado de Direito democrático, assente na salvaguarda da dignidade humana.
28 - Existe um núcleo absolutamente inviolável da intimidade privada, para o qual nem as exigências de prevenção ou repressão criminal constituem interesse que a Constituição tenha como legitimador da respetiva ingerência ou refração.
29 - Por sua vez, a esfera relativamente inviolável da intimidade privada, encontra-se sujeita ao regime próprio das restrições de direitos, liberdades e garantias, mormente de proporcionalidade, sendo apenas constitucionalmente toleráveis as ingerências que obedeçam aos crivos da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.
30 - No contexto do processo penal, a Constituição estipula a nulidade e a impossibilidade de utilização das provas recolhidas com abusiva intromissão na vida privada e na correspondência, como será aquela que ocorrer fora dos casos previstos na lei.
31 - Constitui uma forma abusiva de intromissão na vida privada e na correspondência, interesses constitucionalmente tutelados, a apreensão de correio eletrónico operada em processo penal, sem ordem ou autorização prévia de um juiz, ainda que a correspondência eletrónica a apreender ou apreendida, no momento da respetiva apreensão, se encontre sinalizada enquanto lida ou aberta.
32 - Encontram-se protegidos pelo direito fundamental à inviolabilidade da correspondência eletrónica não apenas os chamados dados de conteúdo, como também os dados de tráfego, os quais são transversais e existentes em qualquer forma de correio eletrónico (lido/aberto e não lido/fechado).
33 - A simples visualização de uma «caixa de correio eletrónico», sem que sequer se abra cada uma das mensagens individuais aí gravadas, pode permitir o conhecimento não apenas de elementos respeitantes à concreta comunicação ou mensagem (como, por exemplo, o "assunto"), como também de elementos relativos ao emissor e destinatário das mensagens, número de interações comunicativas, suas data e hora, volume de dados transmitidos, ou IP de origem, que se configuram como dados de tráfego (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021).
34 - As operações necessárias à apreensão de correio eletrónico ou de mensagens de natureza semelhante no decurso de uma pesquisa a um sistema informático importam um risco considerável - senão mesmo a inevitabilidade - de acesso a dados pessoais protegidos, relativos à correspondência do utilizador, bem como a dados de tráfego e de conteúdo abrangidos pela garantia constitucional de inviolabilidade do sigilo (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021).
35 - O acesso indiscriminado à correspondência eletrónica permite facilmente traçar um retrato fiel, e muito completo, da vida do utilizador em causa, agregando informação atinente aos distintos planos da vida de cada pessoa - as distintas máscaras com que cada um se apresenta no plano social, laboral e familiar (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021).
36 - O potencial ablativo de liberdade e a gravidade da intromissão na esfera privada - e até na esfera íntima - da pessoa que decorre da simples visualização da respetiva caixa de correio eletrónico são, pois, de tal forma significativos, que devem mobilizar-se, neste campo, as mais intensas garantias que a Constituição confere à inviolabilidade das comunicações e à privacidade dos dados pessoais no domínio da informática; é essencial assegurar o cumprimento do dever estadual de abstenção, ou não ingerência, nestes domínios, a não ser em casos objetiva e rigorosamente delimitados, claramente justificados, e mediante atuação de órgãos que assegurem uma intervenção isenta e imparcial, e um elevado grau de proteção dos direitos fundamentais afetados (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021).
37 - É materialmente inconstitucional a norma segundo a qual, na fase de inquérito, é da competência do Ministério Público a decisão sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico que se encontrem sinalizadas enquanto abertas ou lidas no momento da respetiva apreensão,
38 - Norma que se terá por reforçadamente ofensiva da Lei Fundamental quando, em complemento, se considerar tal competência do Ministério Público, sem que tenha o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento ou decidir sobre a sua junção aos autos.
39 - Do mesmo modo, é materialmente inconstitucional a norma segundo a qual, na fase de inquérito, compete ao Ministério Público ordenar aos órgãos de polícia criminal a apreensão de correio eletrónico, sem abertura ou visualização do respetivo conteúdo, a fim de que este seja entregue, para primeira visualização e decisão sobre a relevância para a prova ou descoberta da verdade, ao juiz de instrução criminal competente.
40 - É, também, materialmente inconstitucional a norma segundo a qual, na fase de inquérito, é da competência do Ministério Público proceder à primeira visualização do correio eletrónico apreendido - independentemente de quem haja ordenado ou autorizado a sua apreensão -, sem que tenha o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento ou decidir sobre a sua junção aos autos.
41 - Tais normas encontrar-se-ão extraídas, isolada ou conjugadamente, do disposto nos artigos 2.º, alínea b), 16.º, n.º 1 e 17.º, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro e, bem assim, dos artigos 179.º, n.º 3, 249.º, n.º 1, n.º 2, alínea c) e n.º 3, 252.º, n.º 1, 252.º-A, n.º 1 e 263.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal.
42 - Tais soluções normativas são violadoras dos artigos 20.º, n.os 1, 4 e 5, 26.º, n.os 1 e 2, 32.º, n.os 4 e 8, 34.º, n.os 1 e 4, 35.º, n.os 1, 2 e 4 e 202.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.
43 - A norma, que passa por atribuir, na fase de inquérito, ao Ministério Público, a competência para decidir sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico que se encontrem sinalizadas enquanto abertas ou lidas no momento da respetiva apreensão, sobretudo sem que tenha o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento ou decidir sobre a sua junção aos autos é, salvo melhor opinião, frontalmente atentatória das normas, direitos e princípios constitucionais a que nos vimos referindo - essencialmente, a tutela jurisdicional efetiva e a reserva exclusiva de juiz para a prática da atos instrutórios que consubstanciem formas relevantes de ingerência em direitos fundamentais.
44 - De facto, ao diferenciar - reduzindo - a tutela jurídica, substantiva e processual, atribuível à correspondência eletrónica que, no momento da apreensão em processo penal, se apresenta como lida/aberta, tal norma afronta diretamente a tutela que a Lei Fundamental assegurou, em exclusivo, por meio de intervenção de um juiz, aos direitos fundamentais que estão na órbita da correspondência eletrónica.
45 - Ademais, tal norma opera uma distinção - entre correio lido/aberto por um lado, não lido/fechado por outro - que não encontra na Lei Fundamental reflexo imediato ou, sequer, justificação, e que é também criadora de uma total afronta à obrigação constitucionalmente imposta sobre o legislador, de criação de mecanismos legais eficazes contra a obtenção abusiva de informações respeitantes à privacidade dos cidadãos.
46 - Ao afastar-se do campo de aplicação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime as mensagens de correio eletrónico que se encontrem sinalizadas como lidas/abertas aquando da respetiva apreensão, está-se a criar um tratamento desigualitariamente injustificado à tutela legal contra ingerências abusivas na reserva da intimidade da vida privada.
47 - De facto, ao sinalizar-se como não lida/fechada e, consequentemente, aplicando-se o artigo 17.º da Lei do Cibercrime, garante-se, entre o mais, ao titular da correspondência eletrónica a apreender, que esta só será apreendida por ordem ou autorização de um juiz, que será responsável por proceder à primeira visualização do seu conteúdo, a fim de aquilatar sobre a respetiva grande importância para a descoberta da verdade, ficando obrigado a segredo quanto àquelas que não selecionar; diferentemente, ao titular da correspondência eletrónica a apreender, que esteja sinalizada como lida/aberta, já só se garante a intervenção de um juiz após o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal terem considerado terem sido apreendidos elementos «cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos» (cf. artigo 16.º, n.º 3, da Lei do Cibercrime).
48 - Desse modo, é entregue aos órgãos responsáveis por investigar e acusar a competência para primeiramente "ajuizar" sobre a natureza privada ou íntima dos elementos apreendidos, que deles tomam total conhecimento do respetivo teor e, aliás, sem qualquer previsão legal de sujeição a dever de segredo sobre aqueles que, a posteriori, venham eventualmente a ser excluídos por um juiz, tudo sempre num campo de grande incerteza e de total discricionariedade dos órgãos acusadores e, por conseguinte, na ausência de um quadro normativo eficaz contra intromissões abusivas da intimidade da vida privada e familiar.
49 - Acresce ainda que a norma que atribui ao Ministério Público, sem despacho prévio de autorização do juiz de instrução, a competência para ordenar aos órgãos de polícia criminal a apreensão de correio eletrónico, sem abertura ou visualização do respetivo conteúdo, a fim de que este seja entregue, para primeira visualização e decisão sobre a relevância para a prova ou descoberta da verdade, ao juiz de instrução criminal competente, atinge os mesmos valores constitucionais, na medida que transfere - à margem do que a Lei Fundamental impõe - para o Ministério Público uma competência jurisdicional, respeitante à tutela antecipada dos direitos fundamentais atingidos com a apreensão da correspondência eletrónica.
50 - A lesão possível dos direitos fundamentais daquele que seja visado numa diligência de apreensão de correio eletrónico exige, à luz dos valores constitucionais que norteiam o processo penal, que a decisão sobre esse primeiro acesso à sua correspondência esteja exclusivamente reservada para um órgão jurisdicional, equidistante e imparcial, com certeza diferente daqueles a quem é afeta a competência para investigar e acusar (órgãos de polícia criminal e Ministério Público).
51 - A atuação, no processo penal, do Ministério Público, será sempre interessada - interessada na realização, lícita e legítima, da ação penal -, e tanto é suficiente para afirmar que a norma que atribua ao Ministério Público a competência para decidir sobre a primeira (e bastante significativa) ingerência no procedimento de apreensão de correspondência eletrónica, não alcança uma salvaguarda constitucionalmente suficiente dos direitos fundamentais imediatamente atingidos por essa ingerência.
52 - Mutatis mutandis, a norma que atribui ao Ministério Público a competência para proceder à primeira visualização do correio eletrónico apreendido - independentemente de quem haja ordenado ou autorizado a sua apreensão -, sem que tenha o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento ou decidir sobre a sua junção aos autos, consubstancia, de modo equivalente, violação dos mesmos interesses constitucionais.
53 - As inconstitucionalidades assinaladas são invocadas nos termos e para os efeitos do artigo 72.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, estando os Tribunais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 204.º, da CRP, impedidos de aplicar normas «que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados».
54 - No necessário provimento do recurso interposto, deverá ser fixada jurisprudência nos termos infra requeridos e, consequentemente, determinada a revogação do Acórdão Recorrido, a fim de que seja proferido novo Acórdão que respeite a jurisprudência fixada, o que se requer nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 445.º, n.º 2, do CPP.
O SENTIDO EM QUE DEVE SER FIXADA A JURISPRUDÊNCIA
Termos em que se requer a V. Exas., Exmos(as). Juízes(as) Conselheiros(as) que compõem o Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, que seja concedido integral provimento ao Recurso e que seja fixada jurisprudência do seguinte modo, consequentemente determinando-se a revogação do Acórdão Recorrido, a fim de que seja proferido novo Acórdão que respeite a jurisprudência fixada:
Na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução criminal a decisão sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico, mesmo que se encontrem sinalizadas como abertas ou lidas no momento da respetiva apreensão, devendo o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento, a fim de decidir pela junção aos autos daquelas que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Por seu turno, o Senhor Vice-Procurador Geral da República, concluiu a sua peça processual, nos seguintes termos, que passamos, igualmente, a transcrever:
Em conformidade com o exposto, conclui-se que, face ao regime de apreensão de correio eletrónico previsto na Lei do Cibercrime e aos demais princípios constitucionais enunciados, o Ministério Público é competente para recolher ou apreender cautelarmente caixas de correio eletrónico - independentemente do carácter aberto/acedido ou não aberto /não acedido das mensagens - e apresentar ao Juiz de instrução as mensagens que entenda necessárias e relevantes para a prova a fim de este determinar, ou não, quando necessário, a sua junção aos autos.
Devendo, pois,
Fixar-se jurisprudência no seguinte sentido:
Para efeitos do disposto no artigo 17.º da Lei do Cibercrime, conjugado com o previsto no artigo 16." do mesmo diploma, compete ao Ministério Público determinar a recolha de correio eletrónico (ou de registos de comunicações de natureza semelhante), se o mesmo for encontrado no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, bem como a determinação de quais as mensagens pertinentes em termos probatórios, competindo ao juiz autorizar (ou não) a apreensão das mesmas e a respetiva junção aos autos, nos casos em que as mensagens (ou registos de comunicações semelhantes) não tenham, ainda, sido abertas ou acedidas pelo destinatário.
6 - Tendo tido lugar a Conferência prevista no art. 443.º n.º 1, do C.P.P., cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
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