«A venda de imóvel hipotecado, com arrendamento rural celebrado posteriormente à hipoteca, não faz caducar este arrendamento de harmonia com o preceituado no n.º 1 do art. 22.º do RAR, sendo inaplicável o disposto n.º 2 do art. 824.º do CC.»

destaques dr

 

Publicação: Diário da República n.º 241/2024, Série I de 2024-12-12

Emissor: Supremo Tribunal de Justiça

Data de Publicação: 2024-12-12

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TEXTO

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2024

Proc. n.º 2560/09.1TBLLE-C.E1.S2

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Julgamento ampliado de revista no Supremo Tribunal de Justiça:

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Em acção executiva, sob a forma de processo comum, que E..., gmbh, moveu contra AA, foi designada a venda por abertura de propostas em carta fechada de um prédio misto e de uma fracção autónoma, tendo AA e BB (arrendatário) requerido que fosse dada sem efeito a venda aprazada em virtude de tanto o anúncio como o edital serem omissos em relação ao arrendamento e ao subarrendamento que oneravam o referido prédio misto.

O requerimento foi indeferido com os seguintes fundamentos:

“Entende o tribunal que inexiste qualquer fundamento para dar sem efeito a venda executiva no que tange a qualquer um dos bens imóveis.

Com efeito, embora o prédio misto se ache alegadamente onerado com um contrato de arrendamento que foi objeto de subarrendamento, sucede que o mencionado contrato não subsistirá à venda executiva, em virtude do mesmo ter sido celebrado em momento posterior (ou seja data de 12.10.2009) à constituição da hipoteca (registada em 25.08.2005) que igualmente onera o prédio penhorado e que foi constituída a favor do e que atualmente se encontra na titularidade do credor reclamante Bolsimo - Gestão de Activos, SA. A este propósito pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2013, Proc. n.º 88726/05.2YYLSB.L1-2 que: I - A norma do artigo 1057.º do Código Civil não é absoluta e conhece os mesmos limites, para tutela dos credores e adquirentes - terceiros relativamente à relação locatícia - que os próprios direitos reais sofreriam em hipótese de venda executiva. II - Assim, o arrendamento de imóvel, posterior à constituição de garantia como a hipoteca do mesmo, destarte prioritária, caduca com a venda, Ex vi do artigo 824.º, n.º 2, Código Civil.

E, inexistindo qualquer ónus que deva subsistir à venda executiva, inexiste qualquer fundamento para a sua publicitação (nos mesmos termos que não foi publicitada a hipoteca que igualmente onera o bem imóvel).

Nestes termos indefiro o requerido, devendo manter-se a data já designada para a abertura de proposta.

Custas pelo incidente anómalo a cargo do executado que fixo em 1 (uma) UC - art.7.º, n.º 8 e 4 do Regulamento das Custas Judiciais”.

Inconformados, AA e BB apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por uma outra que decretasse que o arrendamento não havia caducado com a venda executiva.

Por Acórdão de 30.05.2019, os Exmos. Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora decidiram pela total improcedência do recurso e confirmaram a decisão recorrida.

Deste Acórdão vieram, de seguida, AA e BB interpor recurso de revista por via excepcional, ao abrigo do artigo 672.º do CPC, com vista a alcançar uma decisão em que seja reconhecido que o arrendamento não caducou com a venda executiva.

Formulam, a final, as seguintes conclusões:

“I

A)-O recurso deve ser admitido como revista excepcional, com subida em separado e efeito devolutivo, por se verificarem os pressupostos que depende a sua admissão como tal, por haver dupla conforme, ou seja, o acórdão recorrido confirmou sem qualquer voto de vencido a sentença da 1.ª Instância e com a mesma fundamentação jurídica, razão pela qual, os recorrentes lhes está vedado ex vi do n.º 3 do artº671 o recurso de revista normal, com a excepção do preceituado no artº672 onde se enquadra na alínea c)do n.º 1 do CPC.

B)-Através das suas alegações, deve dar-se como provado que o recorrente preencheu todos os pressupostos que a lei no artº672 faz depender a admissão desta revista excepcional.

II

O ACÓRDÃO FUNDAMENTO ESTÁ EM CONTRADIÇÃO FRONTAL COM O ACÓRDÃO RECORRIDO.

Razão pela qual deve ser admitido o recurso no Supremo Tribunal de Justiça EX vi dos preenchimento dos pressuposto do artº672 n.º 1 alínea c)em conjugação com o artº674 ambos do CPC, que fixa a competência do STJ e os fundamentos do recurso que no entender do recorrente é a violação expressa do artº1057 do Ccivil e tudo que ele representa para os cidadãos e comunidade jurídica e na certeza do direito, por erro de aplicação e interpretação deste normativo que depende da verificação de certos factos e alegações que não foram produzidas in processo e por se encontrar o acórdão recorrido em OPOSIÇÃO FRONTAL com o acórdão fundamento, tendo em vista a Uniformização da jurisprudência na aplicação do artº1057 do C.C..

Deve ser prolatado acórdão que, considere a revista excepcional procedente e REVOGUE QUER A SENTENÇA, QUER O ACORDÃO DA RELAÇÃO RECORRIDO, por total oposição com o acórdão FUNDAMENTO, DECLARANDO QUE O ARRENDAMENTO E SUBARRENDAMENTO NÃO CADUCARAM COM A VENDA EXECUTIVA ex vi do n.º 2 do artº824 do C.C., continuando o recorrente na detenção do imóvel locado”.

A E..., gmbh, apresentou, por sua vez, contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:

“I - Do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

II - O n.º 3 que “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.” - chamada dupla conforme. (negrito nosso).

III - Existe dupla conforme quando o acórdão da Relação confirme, sem restrições, o decidido na 1.ª instância - o que aconteceu na integra -, ou seja, o acórdão recorrido confirmou, em absoluto, o despacho proferido pelo Tribunal “a quo”.

IV - Com dupla conforme - n.º 3 do artigo 671.º do CPC - não é admissível o presente recurso apresentado pelo Recorrente.

V - O n.º 1 do artigo 672.º do CPC, enumera, excecionalmente e de uma forma taxativa, os casos em que o recurso de revista é admitido.

VI - A Recorrente socorre-se da alínea c) do mesmo preceito legal para justificar a interposição do presente recurso de revista, mormente “o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito…”.

VII - O acórdão recorrido não está em contradição com outro, ou seja, o acórdão proferido pela Relação de Évora nos presentes autos não está em contradição com o acórdão, proferido pela Relação de Lisboa nos autos n.º 1357/17.0T8LSB-C.L1-1 e aqui apresentado pelo Recorrente.

VIII - O Recorrente invoca uma pretensa contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, de que juntou cópia, sustentando que ambas as decisões estão em oposição e que resolvem a mesma questão de direito;

IX - E indigita como acórdão-fundamento o proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Abril de 2019, no âmbito do processo n.º 1357/17.0T8LSB-C.L1-1.

X - Efectivamente, e embora em ambos os acórdãos esteja em causa apreciar a caducidade de um contrato de arrendamento, o certo é que tanto o quadro normativo como a factualidade atinente a cada um deles é completamente distinta.

XI - Conforme se colhe na matéria de facto do acórdão-fundamento indicado pelo Recorrente, a venda judicial/executiva teve lugar no âmbito de um processo de insolvência o qual é regulado por diploma próprio, só sendo aplicável o regime geral se o caso não for expressamente regulado no CIRE (cf. artigo 17.º do CIRE);

XII - O artigo 109.º do CIRE dispõe, em particular, sobre os efeitos da insolvência sobre a locação;

XIII - O acórdão-fundamento versa sobre um contrato de arrendamento de um prédio urbano para habitação.

XIV - A factualidade explanada no acórdão recorrido é absolutamente distinta.

XV - No aresto recorrido, a Relação de Évora versa sobre a caducidade de um contrato de arrendamento rural no âmbito de uma venda judicial/executiva efectivada num processo executivo.

XVI - Na fundamentação de direito apresentada pela Relação de Évora, designadamente, pelos Exmo. Senhores Desembargadores e que a aqui Recorrida adere “in totum”, que o contrato de arrendamento rural caduca com a venda executiva nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

XVII - A alínea c) do artigo 672.º do CPC exige que se trate de acórdãos contraditórios no sentido de estarem em oposição frontal e não apenas implícita ou pressuposta e que incidam sobre a mesma questão fundamental de direito.

XVIII - Não basta que as decisões sejam análogas, tendo que se tratar da mesma questão fundamental de direito, o que só acontece quando a factualidade, perante norma aplicável, seja idêntica, por isso, só há oposição justificativa da revista excepcional quando os mesmos preceitos são interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos - o que não é o caso.

XIX - Os factos absolutamente diferentes que levam a uma realidade totalmente distinta.

XX - Face ao exposto afirmamos que não ocorre a invocada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento que é indicado pelo recorrente, pelo que deverá o mesmo ser indeferido e por não admitido.

XXI - Considera-se douto e acertado o acórdão recorrido de fls…a que a Recorrida não pode deixar de aderir “in totum” não se vislumbrando que tal decisão padeça de falta de fundamentação ou que tenha aplicado incorrectamente a lei como pretende o Recorrente.

XXII - O recurso de revista foi interposto na sequência do acórdão proferido em 2019-05-30, a qual julgou improcedente o recurso de apelação confirmando o despacho recorrido, nomeadamente, com a caducidade do arrendamento por via da venda executiva.

XXIII - O artigo 824.º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Venda em execução”, prevê no seu n.º 1 que “A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.”;

XXIV - Acrescenta o n.º 2 que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”.

XXV - A caducidade do arrendamento com a venda judicial tem sido objecto de controvérsia tanto na doutrina como na jurisprudência que, no entanto, mais recentemente tem vindo a pacificar-se no sentido de entender que a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento do imóvel, desde que este tenha sido celebrado após a data do registo de hipoteca, pois constitui um verdadeiro ónus em relação ao prédio.

XXVI - Determinante para o efeito é assim a data da celebração do contrato de arrendamento, com referência quer à data da constituição e registo da hipoteca, quer à data da realização da penhora;

XXVII - A questão põe-se com maior intensidade quando o contrato de arrendamento foi celebrado depois da constituição da hipoteca, verdadeiro direito real de garantia, e antes da penhora e quando tem lugar a venda do imóvel na execução - o que aconteceu nos presentes autos.

XXVIII - Para resolução da questão importa, desde já, saber quais os direitos que caducam com a venda judicial nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do C. Civil e se o arrendamento cabe na expressão “demais direitos reais”.

XXIX - No nosso entendimento é que o arrendamento cabe na expressão “demais direitos reais”.

XXX - Apesar de se entender que o arrendamento não assume a natureza de um direito real, a tese da não caducidade não é a que melhor responde às exigências de justiça, nem aos interesses teleologicamente detetáveis no n.º 2 do artigo 824.º do C. Civil, cuja ratio é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer encargos;

XXXI - A interpretação dada ao n.º 2 do citado art. 824.º, no sentido de que o mesmo abrange também o contrato de arrendamento, é a que melhor assegura um equilíbrio proporcional entre os vários interesses em jogo: o interesse do proprietário do bem hipotecado, em celebrar o contrato de arrendamento; o do arrendatário, que sabe ou pode saber pela publicidade registral que o bem objeto do arrendamento está sujeito à execução, e o do credor hipotecário, que não vê o bem hipotecado sofrer desvalorização em consequência do arrendamento.

XXXII - Com esta solução sairá, objetivamente, penalizado o arrendatário, a verdade é que, no jogo de interesses em confronto, fará menos sentido protegê-lo, em detrimento do credor hipotecário, tendo em consideração que ele não ignorava ou não devia ignorar a hipoteca que onerava o bem locado e que o credor se vê confrontado com uma desvalorização do imóvel decorrente do arrendamento, entretanto celebrado sem a sua intervenção e vontade.

XXXIII - Atendendo à ratio do n.º 2 do artigo 824.º do C. Civil, deve incluir-se, por analogia das situações, o arrendamento.

XXXIV - Com este cenário jurídico e considerando que, no caso em apreço, a hipoteca sobre o imóvel vendido no processo executivo encontra-se registada a favor da recorrida/adquirente desde 25.08.2005 e que o contrato de arrendamento invocado pelo Recorrente é posterior a esta data, não podemos deixar de considerar que o mesmo, por aplicação do citado art. 824.º, n.º 2, caducou automaticamente com a venda do imóvel arrendado no processo executivo;

XXXV - Pelo que nenhuma censurar pode merecer o douto acórdão recorrido que, por isso, será de manter, improcedendo, por isso, todas as conclusões do recurso interposto pelo Recorrente.

XXXVI - O acórdão recorrido ao decidir como decidiu, nomeadamente, considerando a improcedência do pedido efectuado pelo Recorrente, está a decidir em consonância com a lei aplicável e com a jurisprudência dominante.

XXXVII - O pedido formulado pelo Recorrente não poderia proceder, como efectivamente veio a acontecer no acórdão proferido pela Relação de Évora”.

Em 1.10.2019 foi proferido pelo Exmo. Relator do Tribunal da Relação de Évora o seguinte despacho:

“O recurso é tempestivo e foi interposto por quem tem legitimidade, sendo certo que o valor em causa não obsta ao recurso de revista excecional.

Subam, assim, os autos ao STJ para os efeitos tidos por convenientes”.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal, a Formação a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do CPC decidiu não admitir a revista excepcional.

Entendendo, porém, que os recorrentes invocavam uma contradição jurisprudencial, determinou a distribuição dos autos nos termos gerais para a apreciação da admissibilidade do recurso, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC.

Por despacho de 5.12.2019 a Exma. Relatora admitiu a revista ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC e, nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do CPC, suspendeu a instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no Proc. 1268/16.6..., uma vez que nestes autos estava em causa a interpretação do artigo 824.º, n.º 2, do CC e a decisão da questão, não obstante suscitada no contexto do processo de insolvência, poderia, de alguma forma, revelar-se pertinente também para a decisão dos presentes autos.

Em 5.07.2021 foi proferido o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2021, publicado no Diário da República n.º 151/2021, 1.ª série, de 5 de Agosto, que firmou a jurisprudência no seguinte sentido:

“A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil”.

Perante o teor desta uniformização, foi submetido, na sessão da 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2021, o projecto de decisão respeitante ao presente recurso.

Da acta desta sessão, assinada pelo Exmo. Senhor Presidente da 2.ª Secção, consta o seguinte:

“Em 27-01-2022 às 10:30, nesta cidade de... e sala de sessões do Supremo Tribunal de Justiça, em sessão presidida pelo Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro Dr. Abrantes Geraldes, por videoconferência, considerando as circunstâncias decorrentes da pandemia, aqui foram apresentados, a fim de se proceder à respectiva conferência, os autos acima identificados em que são:

 

 

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