Quem recebe de uma vez vários anos de salários em atraso ou de recálculos de pensões paga mais imposto do que se recebesse os valores anualmente. Provedora de Justiça pede intervenção de Mário Centeno.
Em apenas um ano, em vez de 21 002 euros de pensão, o seu beneficiário recebeu 55 885 euros, sendo o acréscimo devido a um processo de recálculo do valor da reforma. Parte deste valor acabaria por esfumar-se no IRS porque as regras do imposto impedem que rendimentos de anos anteriores sejam considerados de forma totalmente autónoma e separada. Resultado? Em vez do reembolso de 2339 euros a que teria direito naqueles dois anos se a pensão tivesse sido abonada de forma correta, acabou a pagar 4436 euros de IRS. Este é apenas um dos 89 casos que chegaram à Provedoria de Justiça e que levaram Maria Lúcia Amaral a pedir a intervenção do ministro das Finanças para que a lei seja mudada.
O problema foi criado em 2001 na sequência de uma reforma do IRS. Por essa altura eliminou-se a norma que determinava que valores relativos a anos anteriores eram tributados, em sede de IRS, de acordo com as regras (escalões, taxas e deduções) em vigor em cada um desses anos. E não, como passou a suceder, que o cálculo fosse feito como se grande parte daquele rendimento tivesse sido recebido num mesmo ano.
É certo que a redação do artigo em causa sofreu várias alterações nestes últimos anos (permitindo-se atualmente a divisão do rendimento pelo número de anos a que respeitem, incluindo o do recebimento), mas a solução continua a penalizar os contribuintes que se vejam nesta situação por causa de recálculos de pensões, por pagamento de salários em atraso ou de remunerações devidas na sequência de uma decisão judicial (que considere, por exemplo, um despedimento ilegal e obrigue ao pagamento dos salários correspondentes aos anos que a situação durou).
Manuel Faustino, fiscalista e antigo diretor do IRS, salienta a "injustiça" das regras em vigor e lembra que, até ao ano 2000, não só era permitido imputar os rendimentos a cada ano e sujeitá-los às taxas e escalões em vigor nas datas correspondentes, como o contribuinte tinha a possibilidade de fazer a sua declaração de imposto nos 30 dias seguintes ao recebimento sem que lhe fosse aplicada qualquer multa.
Desde 2005 chegaram à Provedoria de Justiça 89 queixas a dar conta deste tipo de acertos no IRS, sendo que 22 foram remetidas já nestes últimos anos. O número e a falta de uma resposta levaram a atual provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, a fazer uma recomendação legislativa ao ministro das Finanças para que altere a lei visando a resolução de todos estes casos ou que, pelo menos, salvaguarde os contribuintes isentos de IRS que tenham recebido salários ou pensões de forma regular, para que não sejam prejudicados em termos fiscais.
Esta é a segunda recomendação legislativa com os mesmos objetivos em dez anos, sendo que pelo meio se registaram vários pedidos de intervenção junto do titular da pasta dos Assuntos Fiscais. A última seguiu em setembro do ano passado.
O Dinheiro Vivo questionou o Ministério das Finanças sobre estes casos e se, desta vez, será dada resposta ao pedido de intervenção da Provedoria de Justiça, mas não obteve resposta em tempo útil.
Exemplos da injustiça do tratamento fiscal dado a estes rendimentos de anos anteriores não faltam, havendo alguns que revelam situações de trabalhadores que pelo seu rendimento (próximo do salário mínimo nacional) estariam livres de pagar IRS e que acabam por ser 'apanhados' pelo imposto por receberem de uma vez só vários anos de remunerações. Mais: além do imposto (porque são enquadrados nos escalões e taxas em vigor no ano em que o pagamento ocorre) beneficiam apenas do equivalente a um ano de deduções (por via das despesas de saúde, educação ou casa ou das que são atribuídas aos dependentes).
Retenção na fonte nada muda
Na proposta de Orçamento do Estado para 2019 o governo propõe uma alteração ao IRS que visa a forma como rendimentos relativos a anos anteriores são sujeitos a imposto. Mas a medida apenas tem em conta a forma como a retenção na fonte é realizada e não como é feito o apuramento do imposto anual. No modelo que agora vigora, se uma pessoa recebesse de uma vez o equivalente a cinco anos de salários em atraso faria a retenção na fonte pela taxa mais elevada.
Em 2019, aquele valor de salários será dividido pelo número de meses em causa, sendo aplicada a taxa de retenção equivalente ao valor que daqui resultar. O problema é que, quando chegar o momento do acerto anual de contas, o apuramento já não seguirá esta regra da total separação e o contribuinte arrisca-se a 'saltar' para um escalão de rendimento onde a taxa de IRS supera a da retenção na fonte. Ou seja, afirma Manuel Faustino, no modelo atual retém-se imposto a mais. Naquele que se propõe, a retenção irá provavelmente ficar aquém do necessário, o que obrigará a pessoa a ter de pagar imposto.
in Diário de Noticias | 07-11-2018 | Lucilia Tiago
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