I - A instituição da obrigatoriedade do seguro de responsabilidade civil automóvel assenta na necessidade de, perante a consciencialização da incompleta ou deficiente capacidade do responsável pelo ressarcimento, socializar o risco da ocorrência de danos graves que é associado ao desempenho de actividades potencialmente perigosas ou portadoras de risco para terceiros.
II - O contrato seguro de responsabilidade civil automóvel garante ao segurado o pagamento da indemnização devida em função do sinistro ocorrido e, simultaneamente, acautela o respectivo património, assumindo a feição de contrato a favor do terceiro lesado.
III - Inexistindo um interesse público que se sobreponha à vontade das partes e que justifique o conhecimento oficioso da questão e destinando-se a obrigatoriedade do seguro automóvel a acautelar os interesses e direitos dos lesados, a norma do art. 429.º, n.º 1, do CCom, deve ser interpretada como se reportando a uma mera anulabilidade, logo inoponível àqueles.
IV - A prestação, pelo segurado, de falsas declarações relativamente à titularidade de carta de condução aquando da outorga o contrato não se integra na previsão do art. 14.° do DL n.º 522/85, sendo que a consequente mera anulabilidade do contrato não é oponível aos lesados nem ao FGA, que se acha sub-rogado na posição daqueles.
V - A observância do princípio da boa-fé não dispensa a seguradora de, na medida do possível, aferir o relevo e alcance daquelas declarações, em vez de se quedar inerte enquanto não lhe são exigidas responsabilidades e enjeitá-las logo que algo corre mal, invocando a nulidade do seguro; estando em causa interesses de terceiros estranhos ao contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel e sendo a sua celebração obrigatória em virtude da necessidade de socializar o risco, impõe-se aos sujeitos contratuais a exigência de abandonarem uma postura liberal cingida aos seus interesses imediatos, na medida em que são co-responsáveis pelo alcance comunitário dos seus comportamentos.
VI - A impraticabilidade de um controlo absoluto das declarações prestadas pelos segurados por parte das seguradoras não pode servir como pretexto para a anulabilidade do contrato de seguro, na medida em que existe um risco assumido pelas partes que, no caso daquelas, tem como contrapartida a aceitação do pagamento do prémio, havendo ainda que ponderar a forte componente social que enforma o regime do seguro de responsabilidade civil emergente da circulação automóvel e sendo certo, também, que a acção indemnizatória não é o campo adequado para avaliar a validade do contrato de seguro.
VII - Pese embora o sinistro tenha ocorrido cerca de 30 dias após a celebração do contrato, deve-se ter por abusiva, na modalidade de venire contra factum proprium, a arguição da nulidade do mesmo, já que o abuso do direito não pressupõe o decurso de um determinado prazo.
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